7245-10

pessoas Preto monocromático cidade rua noite crianças agua reflexão céu inverno chuva estrada fotografia tarde Leica Meia-noite a infraestrutura luz árvore menina Fotos em cima Fs170226 Liten Lund fotografia ponto de ônibus Trevas instantâneo área urbana Preto e branco Fotografia monocromática Filme negro fenômeno Skane abrigo de ônibus Lundc Bangatan Aposotomia 50mmf20asph Aposummicronm50mmasph
Foto encontrada na internet, acredito que o autor é Sigfrid Lindberg 
Quase 1 hora andando de um lado para o outro no ponto de ônibus. Muitas vezes, a minha ansiedade me leva a ficar bem perto da guia. E um ônibus acelerado passa raspando por mim, ao ponto de balançar o meu corpo. Ventania provocante. Frio na barriga.

Finalmente, o meu 7245-10 – Hospital das Clínicas chega. Subo, já sentindo os pinguinhos de chuva iniciais. Sento e abro meu livro. Mas não sei por que não consigo logo de cara mergulhar na leitura. O banco do ônibus me faz escorregar involuntariamente. A chuva começa a engrossar e entra pelas janelinhas até manchar as páginas do Cony. Já me irrito, pois não gosto de nada que, de alguma forma, prejudique os meus livros, sagrados! Penso em desistir... não vou ler hoje. Fecho o livro e me estico para fechar as janelinhas que estão deixando passar a chuva. Mas não dá pra sufocar dentro do ônibus. Então, deixo algum respiro.

Aí começo a olhar pra fora. A noite, a essa hora, a sensação é de que está todo mundo correndo, com pressa de chegar em casa pra logo jantar, assistir à novela ou jornal, tomar banho, dormir. Pra logo logo recomeçar tudo, começar tudo outra vez. Até parece letra de música... “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor...”. É curioso, pois eu me sinto muito mais apressada de manhã do que agora, à noite, voltando pra casa. Claro que não vejo a hora de chegar e fazer quase tudo o que todos fazem. Sim, a sequência descrita agora pouco: jantar, novela, banho, cama. 

Depois me dou conta que a pressa de agora, lá, fora do ônibus, talvez seja consequência da chuva. Que aperta. Aliás, que termo estranho: “chuva que aperta”, “a chuva está apertando”. Só mesmo na nossa língua algo assim faz sentido. E essa é uma das qualidades do português brasileiro. Dei um Google e achei, num Dicionário Gaúcho online: “Apertar a chuva: expressão que significa aumentar a intensidade da chuva”. Brilhante, né? Fico com vontade de ser literal. E se alguém, como criança que ao ouvir algo assim vai logo tentando fazer, tentar apertar a chuva? Rio sozinha e continuo a olhar pelo vidro já todo respingado do ônibus.

O refúgio numa situação molhada como essa acaba sendo o ponto de ônibus, e eu assisto de camarote as pessoas quase grudadas nesse abrigo. Umas ao celular... a maioria no celular! Mas noto um garoto, de uns 15 anos mais ou menos, chegando apressado ao ponto em que estamos parados “carregando e descarregando” pessoas. Ele já chega falando. Não ouço, mas vejo que se expressa com muitos gestos. Mochila nas costas, bermuda e tênis Nike. Fico mais atenta pra entender se ele está com alguém conhecido no ponto. Não. Ah, deve estar ao telefone, usando o fone de ouvido. Não. Pensando alto? Não sei. Está literalmente falando alto e claro, sozinho. O quê? Não faço ideia. Mas fico muito intrigada e... o ônibus acelera.

Meio minuto depois, nem deu tempo de divagar sobre o garoto que falava sozinho no ponto de ônibus da Rebouças, ouço uma voz rouca, masculina, dizendo: “Mas será que vai parar, ou não vai? Eita que hoje tá difícil, hein? Cidade de gente maluca...” Sotaque nordestino, não sei exatamente de onde, mas bem carregado. Voz alta, indignada. Olho pra ver de onde ela vem e o senhor é o próprio nordestino. Baixo, rosto bem redondo, bochechas largas, olhos arregalados. Ele fala como se conhecesse todo mundo no ônibus. Mas não olha pra ninguém em especial. Mais um falando sozinho? Incrível. Que viagem! Não a dele. A minha, de ônibus. Rio mentalmente, sem esboçar o sorriso, tentando me conter. Acho estranho quando vejo pessoas sozinhas fazendo expressões faciais que descrevem seus pensamentos, tipo sorrindo, franzindo a testa etc. Não quero que ninguém me perceba. Escolho a discrição. Mas voltando ao meu vizinho de trajeto, nordestino, falante, ele desce do ônibus falando e continua na calçada, esbravejando! Tá bravo sim, mas com quem? Com o motorista? Com o ônibus? Com o mundo? Não consegui entender direito, mas adorei ouvi-lo.

Entre a chuva apertada, o garoto falante, o nordestino bravo, o tempo passou. Chego em casa.


Comentários