Foto encontrada na internet, acredito que o autor é Sigfrid Lindberg |
Quase 1 hora
andando de um lado para o outro no ponto de ônibus. Muitas vezes, a minha
ansiedade me leva a ficar bem perto da guia. E um ônibus acelerado passa
raspando por mim, ao ponto de balançar o meu corpo. Ventania provocante. Frio
na barriga.
Finalmente,
o meu 7245-10 – Hospital das Clínicas chega. Subo, já sentindo os pinguinhos de
chuva iniciais. Sento e abro meu livro. Mas não sei por que não consigo logo de
cara mergulhar na leitura. O banco do ônibus me faz escorregar
involuntariamente. A chuva começa a engrossar e entra pelas janelinhas até
manchar as páginas do Cony. Já me irrito, pois não gosto de nada que, de alguma
forma, prejudique os meus livros, sagrados! Penso em desistir... não vou ler
hoje. Fecho o livro e me estico para fechar as janelinhas que estão deixando
passar a chuva. Mas não dá pra sufocar dentro do ônibus. Então, deixo algum
respiro.
Aí começo a
olhar pra fora. A noite, a essa hora, a sensação é de que está todo mundo
correndo, com pressa de chegar em casa pra logo jantar, assistir à novela ou
jornal, tomar banho, dormir. Pra logo logo recomeçar tudo, começar tudo outra
vez. Até parece letra de música... “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse,
meu amor...”. É curioso,
pois eu me sinto muito mais apressada de manhã do que agora, à noite, voltando
pra casa. Claro que não vejo a hora de chegar e fazer quase tudo o que todos
fazem. Sim, a sequência descrita agora pouco: jantar, novela, banho, cama.
Depois me dou conta que a pressa de agora, lá, fora do ônibus, talvez seja
consequência da chuva. Que aperta. Aliás, que termo estranho: “chuva que aperta”,
“a chuva está apertando”. Só mesmo na nossa língua algo assim faz sentido. E
essa é uma das qualidades do português brasileiro. Dei um Google e achei, num
Dicionário Gaúcho online: “Apertar a chuva: expressão que significa aumentar a
intensidade da chuva”. Brilhante, né? Fico com vontade de ser literal. E se
alguém, como criança que ao ouvir algo assim vai logo tentando fazer, tentar
apertar a chuva? Rio sozinha e continuo a olhar pelo vidro já todo respingado
do ônibus.
O refúgio
numa situação molhada como essa acaba sendo o ponto de ônibus, e eu assisto de
camarote as pessoas quase grudadas nesse abrigo. Umas ao celular... a maioria
no celular! Mas noto um garoto, de uns 15 anos mais ou menos, chegando apressado
ao ponto em que estamos parados “carregando e descarregando” pessoas. Ele já
chega falando. Não ouço, mas vejo que se expressa com muitos gestos. Mochila
nas costas, bermuda e tênis Nike. Fico mais atenta pra entender se ele está com
alguém conhecido no ponto. Não. Ah, deve estar ao telefone, usando o fone de
ouvido. Não. Pensando alto? Não sei. Está literalmente falando alto e claro,
sozinho. O quê? Não faço ideia. Mas fico muito intrigada e... o ônibus acelera.
Meio minuto
depois, nem deu tempo de divagar sobre o garoto que falava sozinho no
ponto de ônibus da Rebouças, ouço uma voz rouca, masculina, dizendo: “Mas será
que vai parar, ou não vai? Eita que hoje tá difícil, hein? Cidade de gente
maluca...” Sotaque nordestino, não sei exatamente de onde, mas bem carregado.
Voz alta, indignada. Olho pra ver de onde ela vem e o senhor é o próprio
nordestino. Baixo, rosto bem redondo, bochechas largas, olhos arregalados. Ele
fala como se conhecesse todo mundo no ônibus. Mas não olha pra ninguém em especial.
Mais um falando sozinho? Incrível. Que viagem! Não a dele. A minha, de ônibus.
Rio mentalmente, sem esboçar o sorriso, tentando me conter. Acho estranho
quando vejo pessoas sozinhas fazendo expressões faciais que descrevem seus
pensamentos, tipo sorrindo, franzindo a testa etc. Não quero que ninguém me
perceba. Escolho a discrição. Mas voltando ao meu vizinho de trajeto,
nordestino, falante, ele desce do ônibus falando e continua na calçada,
esbravejando! Tá bravo sim, mas com quem? Com o motorista? Com o ônibus? Com o mundo? Não
consegui entender direito, mas adorei ouvi-lo.
Entre a
chuva apertada, o garoto falante, o nordestino bravo, o tempo passou. Chego em
casa.
Comentários
Postar um comentário