Perfil de menina-adulta


Estou tentando seguir a minha resolução de ano novo: escrever diariamente. 
Mas esse texto ainda é do ano passado, revisto hoje. Um dos exercícios da oficina de escrita: 
"Contos para o próximo milênio". Espero que gostem. bjs
Qual a sua melhor lembrança da praia?
Covinhas nas bochechas e nas coxas molhadas. Parece que não cansa. 
Pula cada ondinha como se fosse um jacaré. Ri alto. Até que a fome bate. Corre pra sombra. O milho tá quente.
Assopro. Barriga cheia, se joga de bruços sobre mim. E dorme. Me realizo.
O que te traz a calma perfeita?
Abraço. Um só braço por cima do ombro. Ou dois. Perna também, como se fosse uma clave de sol sobre o
quadril. Pé com pé. Deito na barriga e ouço uma barulheira, como se o vizinho estivesse de mudança.
Cheiro de xampu. Bafo de pasta de dente. Janela batendo com o vento. Luz de abajur. Sua respiração profunda.
O que é que você esconde aí?
Nada não. Sou como um livro aberto. Mas as páginas têm só alguns desenhos, linhas que se cruzam, 
rabiscos deles que nunca consigo descartar. Acho que o meu maior segredo é não conseguir guardar 
os meus segredos. Essa transparência me enfraquece, mas também me esclarece. Sou “eles”. 
E não escondo isso de ninguém.
Já dormiu em um automóvel?
Sim! Mais de uma vez. Servi de cobertor, de berço, de travesseiro. Dei e ganhei colo. Em geral, era madrugada.
O sono tomava conta da gente e, por segurança, a parada era obrigatória. Sempre no meio do caminho.
O bom de tudo é que sempre cheguei. Chegamos.
Tem algum método favorito?
Sorrir. Sempre acho que é o melhor remédio. Sim, já sei, que lugar comum, né? Mas eu fui uma criança
muito tímida. Praticamente muda. Uma ameba fofinha que todo mundo pegava, apertava, beijava,
jogava pra cima. Aí, quando comecei a sorrir, acho que encontrei a minha melhor forma de expressão.
Sorrio pra quase tudo. Óbvio que quando algo não me agrada, transpareço no ato. Faço até bico!
Já matou alguém?
Já. Pessoas que eu imaginava que eram uma coisa e que descobri, da pior maneira, que eram outra. 
Matei com um golpe só dentro de mim. Não sinto culpa alguma, pois elas só viveram mesmo
na minha imaginação. As que estão vivas por aí nunca existiram pra mim. 
Sendo assim, matei e mataria novamente, pois foram atos de autêntica legítima defesa.
Dói?
Muito. Quando param de olhar pra trás. Me falta o ar, a barriga se contorce, a garganta fecha e os olhos ardem.
Meu sorriso amarelo vira lábio retorcido pré-choro, criança que perdeu seu brinquedo favorito.
Aos poucos, depois de um telefonema, uma foto pelo Whatsapp, diminui. Mas só passa quando estão
comigo de novo.

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